Saudades de Heitor Dourado

O médico Heitor Dourado, que faleceu na segunda-feira, em Aracati (CE), e foi enterrado nesta terça-feira (24/08), construiu carreira profissional e científica das mais respeitadas no Amazonas, ao mesmo tempo em que mantinha enorme círculo de amizade na cidade. A assistente social Márcia Baraúna, ex-presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), conviveu em família com o médico infectologista, fundador do Instituto de Medicina Tropical de Manaus (IMTM), e relata um pouco dessa convivência neste emocionado artigo de despedida:

Vá em paz tiozão!!

Márcia Baraúna*

Eu, como muitos, fui surpreendida na tarde de domingo com a notícia da morte súbita do Dr. Dourado.

Nos últimos 30 dias é a sétima pessoa, entre familiares e amigos próximos, que resolveram nos deixar… A cada partida, sinto forte no meu íntimo uma dor pontiaguda pela separação que este evento, inevitável, comporta. Com o ‘tio’ Dourado não foi diferente.

Minha convivência com este cientista se deu na minha infância, quando meus pais e ele, à época casado com ‘tia’ Nícia, participavam da Escola de Pais (EPB), Movimento Católico fundado em 1963, no Brasil, por um grupo de casais e alguns religiosos que se reuniram para discutir e formular diretrizes voltadas para a problemática da família e da educação dos filhos, sob a inspiração de uma experiência que já vinha acontecendo na França.

A proximidade foi tanta que construímos vínculos de família. Passamos a nos freqüentar com regularidade e o bem querer daí para a frente só aumentou, assumindo contornos de uma autêntica amizade que se concretizava em gestos simples, mas concretos, como, por exemplo, apoio nas atividades do cotidiano:  às vezes cabia à nossa família levar a criançada (éramos cinco mais três ‘douradinhas’) à aula de natação; a volta ficava por conta da tia Nícia, que, na sua “Hondinha” amarela, conseguia colocar toda a tropa e fazer a respectiva entrega domiciliar (era nosso delivery!).

Tio Dourado, ao sair à noite do Tropical (o hospital, que era muito mais famoso na família que o hotel), tinha um ritual. Passava lá em casa, para prosear com meus pais. Somente alguns anos mais tarde eu vim a saber que a ‘matéria’ da prosa era, às vezes, compartilhar angústias relativas ao tratamento de algum paciente (quando se tratava de criança a ‘coisa pegava’) ou sua felicidade diante do êxito de procedimentos técnicos que indicavam o avanço científico numa determinada questão ou, ainda, seus projetos de ampliação dos serviços do hospital e, como não podia faltar, tinha também espaço para consulta médica ‘informal’ (se é que isso existe): lá por casa sempre teve muito menino levado (e menina!), além de parentes e funcionários que esperavam a passagem do doutor pra se consultar (talvez uma antecipação profética do que se tornaria o Programa Médico da Família).

Eu posso dar meu testemunho: até os 11 anos tinha as pernas literalmente cravejadas por  ‘curubas’; daí o apelido nada charmoso de “curubenta”! Dona Iclé, minha mãe, que a esta altura junto com seu Petrônio já estão proseando novamente com o amigo Dourado, lá pelo Reino dos Céus, tinha a delicada função de. com a ponta de uma agulha desinfetada, furar as ‘benditas’ curubas para retirar o pus e aliviar a dor… Certo dia, eu, bastante entristecida, perguntei ao ‘tio-doutor’ se ele sabia de algum remédio para curar aquilo. Ele olhou pras minhas pernas, fez um bico e um fungado e profetizou: minha filha, quando fizeres 11 anos isso vai sarar. Esperei uns 12 meses, talvez, e as danadas sumiram para sempre, deixando apenas um ou outro rastro pra comprovar que não estou faltando com a verdade.

Teria mil outras histórias pra contar. Se nas pernas tinha curubas, nos joelhos tenho um legado de ‘rendas’ provenientes de peraltices cicatrizadas que eu fazia vez por outra, sob orientação dos outros irmãos. Acho que o Hospital de Moléstias Tropicais, como eu ouvia chamar, gastou muito fio nas minhas infindáveis suturas. Uma das estripulias ocorreu inclusive na casa do próprio ‘doutor’, no conjunto Jardim Paulista.

Mas pra não falar só de doença, passo a falar de entretenimento. Tio Dourado tinha, com o Samir, um sítio bem próximo à antiga Ponte da Bolívia. Que lugar mágico. Areia branca, igarapé cristalino e de água gélida.

Domingo era sagrado, além da missa, ir à “Chácara Catácia”. A meninada se enfiava no igarapé, enquanto os adultos conversavam sobre cultura, política e tudo mais. Depois todos se reuniam pra jogar futebol num campo improvisado com buritizeiros pelo meio. Quanta animação. Não tinha quem não saísse revigorado espiritualmente pra enfrentar a nova semana de labuta, esperando que ela passasse rápido pra voltar a gozar da companhia dos amigos. Por lá sempre passavam cientistas (vários do INPA), intelectuais e empresários locais, mas também do exterior. Parece-me que a chácara teve a honra de receber a famosa artista Margaret Mee.

Tio Dourado parte desta terra deixando uma trajetória bonita. Tinha como traço característico e marca indelével a simplicidade em alto grau e o completo desprendimento de qualquer espécie de luxo, ostentação e riqueza material.

Por muitos anos morou nesta Chácara, que, no período de julho, nossa família se apropriava para passar férias, na impossibilidade do casal de sair de Manaus com os cinco rebentos. Lá corríamos pra valer, ajudávamos o Edvar e a Cinira a abater frangos e fazíamos verdadeiras maratonas na mata. Que gostoso!

Se grande parte dos intelectuais se descuida dos cuidados com a família e não têm tempo para os amigos, esta regra, dentre outras, foi quebrada pelo Tio Dourado. É por isso que sua ida repentina suscitou tanto desalento. Ele soube cativar os que estiveram com ele. Soube dar atenção, escuta e apoio.

Vá em paz tiozão!! De lá, continue a trabalhar por este povo que o senhor adotou com o coração e rogue a Deus pelo nosso Amazonas, a fim de que cresça na direção certa e sob o princípio da ética e da solidariedade humana.

* Márcia Baraúna é assistente social.

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Comentários

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  1. elianadourado disse:

    Nós, eu e o hélio vamos sentir muitas saudades, do seu carinho da sua solidariedade e do seu jeito carinhoso de se preocupar com o outro.No ultimo telefonema dia 21 ele mostrou mais uma vêz o quanto nos amava.
    Quero declarar que o sentimento era reciproco e que você vai morar sempre em nossos corações.
    Descnça em paz nos braços de JESUS.