Caso do juiz que queria ser chamado de doutor foi sentenciado

O juiz da 9ª Vara Cível de Niterói (RJ), Alexandre Eduardo Scisinio, sentenciou o caso do colega juiz Antonio Marreiros da Silva Melo Neto contra o condomínio do edifício Luíza Village e Jeanette Granato. O postulante queria obrigar os funcionários e demais condôminos a chamá-lo de “doutor”. O texto da sentença é uma demonstração de cultura e cidadania. Confira:

PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO COMARCA DE NITERÓI – NONA VARA CÍVEL – Processo n° 2005.002.003424-4
S E N T E N Ç A
Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por ANTONIO MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO LUÍZA VILLAGE e JEANETTE GRANATO, alegando o autor fatos precedentes ocorridos no interior do prédio que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de ‘senhor’. Disse o requer ente que sofreu danos, e que esperava a procedência do pedido inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de ‘Doutor’, senhor’ ‘Doutora’, ‘senhora’, sob pena de multa diária a ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em dano moral não inferior a 100 salários mínimos. (…)
DECIDO. ‘O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter.’ (Noberto Bobbio, in ‘A Era dos Direitos’, Campus, p. 15).
Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se justificando tamanha publicidade que tomou este processo. Agiu o requerente como jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível sua conduta, na medida em que atribuiu ao Estado a solução do conflito.
Não deseja o ilustre Juiz tola bajulice, nem esta ação pode ter conotação de incompreensível futilidade. O cerne do inconformismo é de cunho eminentemente subjetivo, e ninguém, a não ser o próprio autor, sente tal dor, e este sentenciante bem compreende o que tanto incomoda o probo Requerente. Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de autoridade, ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto que é homem de notada grandeza e virtude. Entretanto, entendo que não lhe assiste razão jurídica na pretensão deduzida. ‘Doutor’ não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário. Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas de ‘doutor’, sem o ser, e fora do meio acadêmico.
Daí a expressão doutor honoris causa – para a honra -, que se trata de título conferido por uma universidade à guisa de homenagem a determinada pessoa, sem submetê-la a exame. Por outro lado, vale lembrar que ‘professor’ e ‘mestre’ são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o curso de mestrado. Embora a expressão ‘senhor’ confira a desejada formalidade às comunicações – não é pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir.
O empregado que se refere ao autor por ‘você’, pode estar sendo cortês, posto que ‘você’ não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação. Fala-se segundo sua classe social.
O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a classe ‘semi-culta’, que sequer se importa com isso.
Na verdade ‘você’ é variante – contração da alocução – do tratamento respeitoso ‘Vossa Mercê’. A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos literários que apresentam altas frequências do pronome ‘você’, devem ser classificados como formais.
Em qualquer lugar desse país, é usual as pessoas serem chamadas de ‘seu’ ou ‘dona’, e isso é tratamento formal.
Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples uso do nome da pessoa substitui o senhor/ a senhora e você quando usados como prenome, isso porque soa como pejorativo tratamento diferente. Na edição promovida por Jorge Amado ‘Crônica de Viver Baiano Seiscentista’, nos poemas de Gregório de Matos, destacou o escritor que Miércio Táti anotara que ‘você’ é tratamento cerimonioso.
(Rio de Janeiro/ São Paulo, Record, 1999).
Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico, como já se disse. A própria Presidência da República fez publicar Manual de Redação instituindo o protocolo interno entre os demais Poderes. Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso que se diz que a alternância de ‘você’ e ‘senhor’ traduz-se numa questão sociolinguística, de difícil equação num país como o Brasil de várias influências regionais.
Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação, etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado do condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela própria comunidade.
Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasalhado, mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre autor, julgo improcedente o pedido inicial, condenando o postulante no pagamento de custas e honorários de 10% sobre o valor da causa.
P.R.I. Niterói, 2 de maio de 2005.
ALEXANDRE EDUARDO SCISINIO
Juiz de Direito

PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO COMARCA DE NITERÓI – NONA VARA CÍVEL – Processo n° 2005.002.003424-4
S E N T E N Ç A
Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por ANTONIO MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO LUÍZA VILLAGE e JEANETTE GRANATO, alegando o autor fatos precedentes ocorridos no interior do prédio que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de ‘senhor’. Disse o requer ente que sofreu danos, e que esperava a procedência do pedido inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de ‘Doutor’, senhor’ ‘Doutora’, ‘senhora’, sob pena de multa diária a ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em dano moral não inferior a 100 salários mínimos. (…)
DECIDO. ‘O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter.’ (Noberto Bobbio, in ‘A Era dos Direitos’, Campus, p. 15). Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se justificando tamanha publicidade que tomou este processo. Agiu o requerente como jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível sua conduta, na medida em que atribuiu ao Estado a solução do conflito.
Não deseja o ilustre Juiz tola bajulice, nem esta ação pode ter conotação de incompreensível futilidade. O cerne do inconformismo é de cunho eminentemente subjetivo, e ninguém, a não ser o próprio autor, sente tal dor, e este sentenciante bem compreende o que tanto incomoda o probo Requerente. Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de autoridade, ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto que é homem de notada grandeza e virtude. Entretanto, entendo que não lhe assiste razão jurídica na pretensão deduzida. ‘Doutor’ não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário. Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas de ‘doutor’, sem o ser, e fora do meio acadêmico.
Daí a expressão doutor honoris causa – para a honra -, que se trata de título conferido por uma universidade à guisa de homenagem a determinada pessoa, sem submetê-la a exame. Por outro lado, vale lembrar que ‘professor’ e ‘mestre’ são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o curso de mestrado. Embora a expressão ‘senhor’ confira a desejada formalidade às comunicações – não é pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir.
O empregado que se refere ao autor por ‘você’, pode estar sendo cortês, posto que ‘você’ não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação. Fala-se segundo sua classe social.
O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a classe ‘semi-culta’, que sequer se importa com isso.
Na verdade ‘você’ é variante – contração da alocução – do tratamento respeitoso ‘Vossa Mercê’. A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos literários que apresentam altas frequências do pronome ‘você’, devem ser classificados como formais.
Em qualquer lugar desse país, é usual as pessoas serem chamadas de ‘seu’ ou ‘dona’, e isso é tratamento formal.
Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples uso do nome da pessoa substitui o senhor/ a senhora e você quando usados como prenome, isso porque soa como pejorativo tratamento diferente. Na edição promovida por Jorge Amado ‘Crônica de Viver Baiano Seiscentista’, nos poemas de Gregório de Matos, destacou o escritor que Miércio Táti anotara que ‘você’ é tratamento cerimonioso. (Rio de Janeiro/ São Paulo, Record, 1999).
Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico, como já se disse. A própria Presidência da República fez publicar Manual de Redação instituindo o protocolo interno entre os demais Poderes. Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso que se diz que a alternância de ‘você’ e ‘senhor’ traduz-se numa questão sociolinguística, de difícil equação num país como o Brasil de várias influências regionais.
Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação, etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado do condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela própria comunidade.
Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasalhado, mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre autor, julgo improcedente o pedido inicial, condenando o postulante no pagamento de custas e honorários de 10% sobre o valor da causa. P.R.I. Niterói, 2 de maio de 2005.
ALEXANDRE EDUARDO SCISINIO

Juiz de Direito”

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Comentários

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  1. A humildade é uma virtude de poucos. Certamente não é a do “Doutor” Alexandre. Perdeu a oportunidade de usar a Justiça para causas cidadãs e nobres, que pudessem reverter em melhorias para seu próprio condomínio. O trecho da sentença “Não deseja o ilustre Juiz tola bajulice, nem esta ação pode ter conotação de incompreensível futilidade.” merece ser guardado na memória.
    Abraços!

  2. Dorval Martins( Badalo) disse:

    Caro Marcos Santos,

    Diz um ditado popular: “juiz, pensa que é Deus. Desembargador, tem certeza.” Marcos, o Brasil tem tantos problemas a solucionar, que se uma boa parcela dos nosssdos agentes políticos fizessen sua parte, a situação já estaria melhor. Mas, creio que este é o grande entrave nosso, esperamos demais.
    Veja vç, a punição imposta aos membros do judiciário, do MP, enfim, às autoridades judiciárias, pelos respectivos conselhos. No caso do Amazonas, vamos relembrar três fatos recentes: caso Ataíde, caso desembargador Jovaldo, caso juíz Celso Gióia. O prineiro já faleceu, mas creio que existe alguém recebendo a polpuda grana. Os outros dois foram aposentados compulsoriamente. Ou seja, em vez da punição o sujeito é premiado a ficar em casa, recebendo mais de vinte cinco mil reais mensais. Onde estamos ? Ah! é o Brasil. Dá para Mudar?
    Parabéns! Ouço vçs todos os dias.

  3. Isaias Reis Pinheiro disse:

    Ola Meu Caro,

    Certas coisas ainda me dão orgulho de ser brasileiro, mesmo sabendo que este não tem solução…..

  4. Jeusius disse:

    Sou Psicólogo e certamente precisamos analisar o fato da dificuldade do tal Dr. tem em lidar com o poder, com as figuras de autoridade. Isto realmente tem fortes influencias em suas necessidades de conviver com estas situações sem agredi-las.
    Jeusius

  5. Manaó disse:

    Pra ser chamado de doutor só fazendo um título de Doutorado.Mas umas pessoas do Judiciário pensam que são Deus, infelizmente este paisinho ta cheio de pessoas assim. Dr só quem faz Doutorado!

  6. Castro disse:

    Um doutor de verdade passa no mínimo 4 anos realizando uma pesquisa em determinada área do conhecimento científico. Após todo esse trabalho, tem que elaborar uma tese e ser submetido a uma banca examinadora de 5 outros doutores, podendo ser ou não aprovado. O rito dura cerca de 6 horas, com questionamentos e respostas. Então, não é um cargo de juiz, advogado ou médico, que não fez um doutorado, que vai garantir automaticamente tal deferência.

  7. Maria disse:

    .Parabéns Alexandre!!!por ter falado a verdade para Os Brasileiros…que não sabem como tratar alguem…vê um cara de Branco já vai logo chamando de doutor…sem sabe se é pai de santo etc tal…Há maioria de medicos,juizes,delegados,advogados…etc….quem ser chamados de doutor,e assim pisa humilhas as pessoas…Alexandre,vc poderia fazer que essa noticia,que vc indeferio viesse a tona…assim esses que são academicos,ficasse no lugar deles…sem querer ser Deus como disse os amigos ai….!!!!????

  8. ricardo disse:

    Mais um pedante que visa status social….